Chuva de Novembro…

Soundtrack: November Rain – Guns N’ Roses

 

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“Sentados ao redor da uma fogueira, tendo como som de fundo a madeira crepitante, iríamos divagar sobre o que era mais belo; um quasar ou uma galáxia? E poderíamos criar cada uma das duas coisas, tamanho seria o nosso poder quando estivéssemos juntos…

Deuses mortos, antigos e novos deuses aguçariam os ouvidos invejosos, para escutar o crepitar da fogueira maculando o som de nossos beijos.

E nada neste dia de Novembro que não existiu seria triste… Cada gota da água da chuva após nos tocar, e após apagar a nossa fogueira, poderia saciar a sede por Compreensão que o Universo carrega no âmago de cada um de seus átomos…”

Paisagens Noturnas…

Crow rainy street

 

Tem dias que ele não consegue dormir bem se não der uma caminhada pra inflar os pulmões de ar noturno. Normalmente são noites de lua cheia, e ele sabe que se não se arrumar e sair, vai ficar rolando pela cama, mesmo estando a noite tão gelada e perfeita pra dormir.

Enfiou a calça jeans de qualquer jeito, e os tênis calçou sem meias mesmo; partiu pra rua.

O luar estava cortante. Só quem tem dores na consciência sabe o que é isso. A noite estava escura apesar do disco de prata no céu, mas ela – a Lua –  iluminava apenas os pecados da alma dele, e o resto era breu. Por isso também ele caminhava, como alguns ébrios, precisava de algo que o fizesse esquecer-se de seus tormentos.

Muitos gritos cabiam em seu silêncio e seus passos lentos. Pouco o surpreendia, e embora soubesse que a própria Vida era um milagre, e que cada aurora trazia em si uma inerente carga de Esperança e possibilidades, aaahhh… Isso não cura angústias seculares.

Um lobo velho não se detém surpreso com a brancura da pelagem de ovelhas novas – pensava ele. Uma coruja piou, como que concordando com seus pensamentos, e voou de um poste elétrico para dento das trevas.

Maquinou, maquinou… Conferenciou-se com deuses antigos, ouviu promessas de Paz vindas do fundo de sua Mente, sua alma balançou uma bandeira branca – já não agüentava mais o peso de tantos pensamentos, condensados em um coração com tão poucos anos de idade – mas ele não se rendeu, seu cerne se manteve imutável; seu coração estaria hoje e sempre em guerra.

Atingia os limites da cidade quando resolveu voltar.  Parou atrás de uma cabine telefônica, retirou as mãos dos bolsos e passou por cima do orelhão; esfriou as mãos, acalmou o último pedaço de sua alma que ainda estava agitado. Antes de retomar a caminhada de volta, perdeu-se observando uma gralha que não parecia se assustar nem com sua presença, e tampouco com a chuva.

Ouviu passos vindo em sua direção, e uma menina cruzou seu caminho, caminhando rápido, provavelmente fugindo da chuva. Sentiu a garota, leu sua aura; o tom sombrio que a noite gelada dava à cidade a deixava um pouco incomodada. Mas não era algo que ela fosse verbalizar, pois isso não se verbaliza. Esse tipo de coisa pouco atrai a atenção de qualquer interlocutor, por isso ela não vai dizer nada. Talvez um dia escrevesse em algum lugar, pra não deixar a sensação completamente perdida…

Ele respirou fundo e seguiu de volta. O sono, um amigo pouco presente, lhe abria os braços, e um abraço desses não se deve adiar…

Kat.

Ele estava parado na frente da porta do apartamento dela há uma hora segurando o bouquet de flores e murmurando algumas palavras de um ensaio prévio em frente ao espelho. Tentava de todo jeito seguir uma linha de raciocínio, mas quando falou alguma coisa que dava pra escutar, saiu-se com isto…

“Eu vim aqui porque você é… Muito… Legal. Mas não só legal. Bem, talvez depois de uma garrafa de vinho eu consiga falar tudo de uma maneira mais fluente. 0k, talvez depois de umas doze garrafas eu tenha a fluência pra dizer e as coisas pra dizer.

É que eu deixei escapar tantas oportunidades ao longo da Vida, mas nenhuma oportunidade… 0k, não falemos oportunidades, falemos pessoas… Eu deixei escapar tantas pessoas legais, maravilhosas, e… Nenhuma opor… Nenhuma pessoa era como você, Kat.

Vamos pular o óbvio de que você é uma mulher linda, com lindos cabelos ruivos e um lindo sorriso, e um par de pernas… Pernas… Que pernas! Meu Deus que pernas são aquelas? É o par de pernas mais perfeito que eu já vi, dá vontade de…
Concentre-se!

É que eu vivo rodando por aí, e você sabe que eu tenho mais poeira nas botas que qualquer outro cara, Kat, porque eu sempre quis conhecer o mundo inteiro. E você…

Você chegou do nada, como eu chego na vida das pessoas. Não quero que você pense que eu estou apaixonado por um reflexo no espelho… Peraí, eu disse apaixonado? Êta porra! Mas vai, eu estou apaixonado – pronto! Porque você chegou, e me deixou sem palavras, e me deixou inseguro, e me deixou com vontade de não demonstrar insegurança, e me fez sorrir feito idiota, e me fez conhecer coisas novas, outras músicas, sentimentos que eu me negava a tentar sentir…

Mas que merda, Kat! Com que direito você chega e me faz de idiota? Quando eu cozinho perto de você eu corto os dedos, eu canto errado as músicas na minha própria língua, eu penso antes de falar, eu pergunto sua opinião. Eu subo a pé desde o andar térreo até o décimo andar e roubo as rosas do apartamento 42 pra te dar. Mas, o principal de tudo isso Kat, o principal é que você me faz querer ficar.

É, você me faz querer ficar e deixar a Estrada pra trás. Você me faz querer ter raízes. Você me faz querer descansar as asas…

Todo mundo imagina a Primavera, e as porras das flores, e o caralho todo ensolarado como cenário das grandes paixões, mas você Kat, você chegou como uma tormenta. O que você não fulminou na tempestade de relâmpagos, você inundou com a chuva ou afugentou com os trovões.

E eu nunca me senti mais pleno antes de você. Os desenhos que fiz no mapa-mundi eram o rascunho da minha Vida, e você foi quem deu contorno. E é por isso que eu quero ficar… Eu me sinto completo.

(…)

Mas que diabos! Que tipo de garota iria querer ouvir um monte de merda como esse?

Olha só pra você, cara; segurando um bouquet de rosas na frente de uma porta de apartamento e falando sozinho! O que houve contigo?
Cala. A. Boca. E. Desce.
Sério mesmo que você achou que a Kat iria cair nos seus braços por isso?

Que tipo de mulher cairia por isso?!”

Eu cairia… – disse uma voz suave e feminina atrás dele. A porta se abriu, e uma menina ruiva botou a cara pra fora, sorrindo.

Ele levou o maior susto que levara na Vida in-tei-ra, e gritou – PUTAQUEOPARIU! Ela levou o dedo aos lábios em sinal de silêncio. Enquanto ainda se recompunha, o garoto perguntou –  Há quanto tempo você tá aí, Kat?!
Ela continuou rindo, e disse –  Desde que o meu vizinho falou que um maluco estava com um bouquet de rosas – flores que eu odeio – na mão e murmurando na frente do meu apartamento, olhando pro chão.

O garoto fez uma cara que era um misto de vergonha com gargalhada contida. Ela abriu a porta pra ele entrar, e ele avançou pra dentro do apartamento. Antes dela fechar a porta, disse – Jogue essas rosas no lixo, por favor… E o que é que você falou mesmo das minhas pernas?

 

 

 

(…)

Do Céu.

Um garoto, do alto de seus vinte e poucos anos senta-se num banco de praça aonde uma moça espera por alguém debaixo de um guarda-chuva. Ela sorri para ele – as sardas apertadas e as covinhas fazem um belo e infantil quadro, de beleza inocente como hoje raramente se vê, e ele sorri de volta.

Não trocam palavras por uma meia hora, e a garota começa a desanimar em sua espera, quando ele começa a falar:

 

-Sabe, esta é a primeira chuva dos últimos cem anos. Não chove há cem anos aqui – Eu sei disso por que sou vinte anos mais velho que a última chuva. É, bem sei, bem sou.

Não, não me olhe com essa cara de quem lhe dirigiu impropérios menina, eu lhe rogo. De fato que soa loucura, mas maior loucura é ninguém reparar que não chove há cem anos.

Não sou nada de sobrenatural – nada está acima da Natureza. Mas acho que a própria Natureza resolveu me punir, ou simplesmente esqueceu de me envelhecer – embora eu acredite mais na tese relacionada à punição.

Acredito que Ela resolveu me punir por eu ter reparado que há tantos mistérios viventes, entre chuvas seculares e sóis que nascem e morrem do mesmo lado do céu, e pra me aderir melhor ao sistema – de maneira mais própria, de maneira mais análoga à estranheza das coisas comuns.

Voltando aos sóis, nunca reparou como às vezes o Sol nasce meio torto, e se põe em horas diferentes? Não, não, não. Não estou falando de solstícios e equinócios, estou falando das tardes que começam em horários diferentes, e das noites que nem sempre terminam iguais – acho que o planeta é tão inconstante em sua rotação como nós, bases carbônicas de polegares opositores.

Há cem anos não chove aqui. Meus pais viram a última chuva e pereceram, e minha última esposa sequer viu chover – só viu garoa. E toda uma geração, senão duas, viu apenas garoar e tomaram garoa por chuva. Não que a intensidade das coisas seja análoga à sua capacidade de ser sublime, longe de mim pensar isso. Há comidas, por exemplo, que não levam tanto tempero, como o Sushi, mas que nem por isso deixam de ser sublimes em sua suavidade.

Entende que o problema é outro? Entende que garoa NÃO é chuva? E ainda assim, muita gente nasceu e morreu nas últimas dez décadas sem saber como pode ser belo um céu em lágrimas.

A seca não me importa, o céu sempre azul não me incomoda mais, mas saberem tão pouco sobre a verdade da chuva me entristece. E às vezes, essa tristeza me consome tantos minutos ao dia quanto se leva pra caminhar até aqui de minha casa – o que é muito – e por isso resolvi começar a caminhar pra ver se consigo achar mais gente que repara que não chove há cem anos.

Mas ninguém reparou até agora…

Eu entendo, é muito trabalho, trânsito, angústia e torpor. É muita falta de chuva, e justamente por isso é que não se vai atrás de reparar que o Céu anda nos negligenciando água, e que o Sol tem se posto mais cedo que o normal…

É por isso que não envelheci, nem vou envelhecer.

Fez-se noite enquanto eu falava – Eu sei que o Céu anda estranho…

 

A moça sorriu, beijou-lhe a testa e saiu caminhando em direção a um carro que estacionara. Ele caminhou na direção oposta…

 

 

 

 

 

Estações…

 

Era escaldante, e mesmo que às vezes ela quisesse arrancar a própria pele por causa do calor, mesmo assim, é fato que ela amava o Verão.

0k, talvez não fosse mesmo amor. Amor com letra maiúscula não, mas era uma paixão deveras forte. E tão forte era que, ainda que tenha posto o Verão para fora de sua Vida, a verdade é que ela deixou a porta aberta e chorava escondida à sua espera…

Mas as estações são implacáveis, e depois de um curto Outono o Inverno chegou. Seu sopro gélido atingiu pedaços de sua alma que nem mesmo ela conhecia, e o calor, insuportável às vezes, tornou-se um borrão de memória no passado.

Caminhar pelo frio, no entanto, exigia demais dela. Descobrir tesouros escondidos pela neve passou a perder a aura de mistério e fascínio para dar lugar a um cansaço mental que ela desconhecia e já não suportava de bom grado. Lá se foi então novamente, trancar-se à espera da Primavera…

…Mal sabe que as rosas murcham no final.

Ou sabe? Fato é que ela mesma é a quinta estação, e assim como as outras tem seus próprios fascínios e penúrias.

Só que ela já não se agüenta também, e vai levar um tempo até perceber que a Roda é o que faz o brilho das coisas.

Mas antes mesmo das rosas murcharem ela já queria caminhar pelas folhas secas do chão de Outono.

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Você é bem trouxa, menina!

Do Observador de Baratas…

Ele agora observa as baratas. Cadáveres inertes de baratas. Espalhara ontem à noite veneno em seu apartamento. Elas morreram. E agora nunca mais vão mexer na sua comida.

Observa-as com inveja. Inveja da morte. Observa as baratas com a aflição da certeza de que se estivesse morto seria um cadáver anônimo como estas baratas. Ele tem um rosto parecido com um dos nossos. Um pesaroso e invejado estilo de vida como um dos nossos. E como uma das nossas se sua vida for extinta a umidade das lágrimas roladas por este evento não sobreviverá se morrermos num sábado. Não haverão lágrimas que sobrevivam ao anoitecer de um sábado.

Ele tem um calhamaço de mil páginas. Exatamente mil páginas de sua vida. Nem boas nem ruins, apenas idéias. Ele tem pensado muito na escrita. Como deixar de ser um rosto anônimo se alguém lhe mostrar o taxista que sabe quais ruas e avenidas vão de encontro ao amor. Ou à paz. Ou a ambos. Mas o taxista que ele conhece só sabe o caminho de seu bar predileto e o da sua casa.

Hoje à noite ele foi ao seu bar predileto e se encontrou com seus amigos.

Bebeu. Riu. Paquerou. Trocou olhares. Telefones. Conversou muito. E voltou para casa com os mesmos um metro e oitenta centímetros de altura com os quais havia chegado ao bar. Voltou para casa.

Ao chegar ele encontrara as baratas.

Destoavam com o seu pequeno porém luxuoso apartamento. Cinqüenta e quatro cadáveres de barata.

Pensou em tudo. Viu tudo. Desejou a morte. Desejou a vida. Um uísque e um charuto. Não teve nada disso acendeu um cigarro e foi dormir.

Acordou e foi tomar banho às três horas da madrugada numa clara atitude excêntrica. Antes fez a barba.

A água quente do chuveiro caiu nas feridas que a lâmina de barbear produzira ao decepar algumas espinhas. Sentiu-se vivo e grato.

E no dia seguinte no trabalho ele pensava e decidia que não há justiça no acaso. Foi bem quando perguntaram se estava tudo bem e ele disse:
– Tudo bem!

Suor & Fumaça.

(…)
Ela saiu do banho secando os cabelos. Seu corpo voluptuoso, de pele clara queimada de sol estava coberto de pequenas gotículas de água, e nada mais cobria essa obra dos deuses senão o olhar dele; que já estava vestido quando ela saiu do banho. A camiseta seca grudava na pele suada e abafava a umidade causada pelo que os dois haviam feito há pouco.
Mas o quarto pulsava ainda…
O quarto ainda pulsava, cheirava a sexo ainda, e no ouvido dos dois ainda ecoavam os gemidos um do outro. Então ao cheiro de sexo misturou-se o cheiro de Morte do charuto barato de chocolate que ele amava. À meia-luz icônica, ela disse – acendendo um cigarro -, displicente e sem cravar seus olhos azuis nele:
-Dorme aí…
-Nunca dormi abraçado – disse ele – e nem quero aprender a fazer isso agora. – engatou com a voz arranhando – mas me diga; não vai mesmo largar dele?
-Não. – ela respondeu com simplicidade.
-Acho que fui longe demais, saindo com vocês como se fosse seu amigo. Ele ainda me deu carona até em casa, e depois eu vim pra cá…
-Esquece isso, me dá uns carinhos… – ela disse, quase ronronando, engatinhando sobre a cama em direção a ele.
Ele ficou meio estático. A fumaça deixava seus olhos vermelhos. Conjecturou alguns milissegundos e questionou-a:
-Eu te deixaria sozinha, né? Mesmo ao te lado, te deixaria sozinha, não é por isso?
-Sim – confirmou a moça, deitando a cabeça no colo dele – Você tem um castelo no ar. Tem o mais lindo castelo no ar que existe, mas eu vivo aqui na Terra. Você é demais, mas é demais pra qualquer mulher, meu anjo… – e lágrimas começaram a escorrer de seu rosto.
Ele abraçou-a com força, carinhosamente, e lambeu cada gotícula salgada que se desprendeu dos olhos azuis da menina.
Ele, sempre ele; apagou seu charuto nas próprias costelas para não chorar também.

(…)

девочка моя (Devochka Moya).

Soundtrack: Lana Del Rey – Blue Jeans

Pela seda que vestia hoje, seus cabelos loiros caiam doces e leves à altura de sua cintura, fazendo um quadro perfeito ao contrastar com sua camiseta vermelha de alças finas. O corpo esguio, vestido numa calça jeans mais velha que o Sol caminhava em meio à noite, fingindo não ter rumo, enquanto ela esboçava um sorriso que não queria sair de seus rubros lábios carnudos por razão alguma. Só ela e seu anjo da guarda sabiam, no entanto, que por mais que ela conseguisse sorrir uma hora, a opacidade de seus olhos azuis como céu de outono a trairiam sempre, pois essa seria pela eternidade dos próximos minutos o espelho de sua alma.

Ela chegou de volta às ruínas de sua antiga casa nos limites da cidade, caminhou pelo cenário claramente consumido pelo fogo no passado. Mas agora as cinzas estava frias; há dez anos ninguém passava por aquele lugar.

Segurou uma antiga fotografia de casal queimada, onde atrás se via inscrições em russo. Jamais poderia imaginar como aquilo poderia ter parado ali, e tinha plena consciência que nunca saberia.

Imaginou ser um carta de amor, daquelas de tom adolescente e meloso em que se planeja um futuro irreal e belo – dobrou, e colocou no bolso. Caminhou um pouco mais, e sentou-se nos escombros de onde um dia foi a parede que dividia seu quarto do quarto de seu irmão. Começou a nevar.

O peso em seu coração, evocado pela presença naquele lugar de tragédia, era como uma tempestade em meio a uma ilha tropical. Mas eis que algum sol insistia dentro do cenário de sua alma, e pouco a pouco o vento tornou-se brisa, a chuva, uma leve garoa. Ela sabia que isso tinha algo a ver com a curiosidade que a carta em seu bolso lhe despertou.

A menina respirou o ar pesado da noite envolta em neve e fumaça de chaminés, enfiou a mão no bolso e trouxe de volta a carta às mãos.

De onde isso viera? Como fora parar ali, em sua casa? De quem e para quem era aquela carta? De que ano seria? Todas essas questões rodaram pela sua mente, mas sem esforço algum para serem respondidas. A garota apenas bebeu o líquido de cores vivazes e sabor doce que eram essas questões, esse mistério, essa carta.

Ficou ali, olhando para as letras, com os baços olhos azuis cada vez mais brilhantes. A sua análise não era fria, de fato concentrou-se apenas na superfície das questões.

Decidira que pela força impressa nas letras, e pelo pouco cuidado na escrita, o remetente era homem. E para ela, todo o mistério agora resumia-se em saber o que a menina sentira ao receber a carta – pois ela estava certa de que a carta fora recebida.

Mas e ela, a remetente? Com o incêndio, ficara sem resposta. A menina que lhe escreveu esperava uma resposta que nunca viria, como quando esperamos o refrão de uma música instrumental que não conhecemos.

A água não pôde ser evitada de escorrer daqueles olhos azuis, embora a garota estivesse sorrindo. E de dentro desse sorriso, brotara uma imaginação doce, da imagem de uma adolescente correndo pelas ruas de Moscou atrás do carteiro, dando um abraço no mesmo e lentamente caminhando de volta pra casa, lendo a carta de seu amado, onde estava escrito:

‘Berlim, 7 de maio de 1945.

Devochka moya,

Você me deu o que me manteve vivo todos esses dias de sangue e chumbo; o sabor de teus lábios.
Berlim não existe mais, sobraram apenas cinzas e história.
Voltarei aos teus braços em breve, basta que decidam quem ficará em guarda aqui, mas os soldados de minha divisão são poucos e prestigiados, logo posso requerer meu retorno imediato, sem medo de ser negado.
Não fique muito pela neve, embora eu saiba que a Primavera beija Moscou eu preciso cuidar de você, mesmo de longe.
O tempo de chumbo e sangue se foi, e o futuro guarda um mundo livre, sem tensão ou guerras.
Devochka moya, Ya tebya lyublyu,

Yuri.’

Coberta em neve, a moça dos olhos azuis consumira-se em lágrimas de emoção, após mentalmente redigir a carta para a menina russa. Como que acordada de um transe, percebera que a noite havia caído sobre o mundo.

Ela se sacudiu, batendo a neve de seus ombros e seu corpo, enquanto levava a carta ao bolso. Levantou-se tremendo de frio e morrendo de fome – mas com um sorriso no rosto. Caminhou em direção à escuridão que separava as ruínas em que se encontrava, da cidade em que vivia, abraçando a si mesma.

A alegria a iluminava, enquanto a noite envolvia suas belas formas a caminho de sua verdadeira casa…

O que é & o que nunca deveria ser…

Trilha Sonora: What is and what should never be – Led Zeppelin

(…)

Depois de eu ter riscado o mármore do Céu com minhas garras. Depois dela rasgar as minhas costas com as dela. Depois dela ninar-se em meu peito ainda arfante, depois do beijo quente e úmido de quatro séculos de duração em meio a quinze segundos. Depois de eu me vestir enquanto ela se espreguiçava por toda a extensão da cama.

Depois disso tudo ela ainda sabia sofrer.

Depois de dormir, ela levantou-se de meu peito, agarrou o violão e sentou-se à beira da cama…

Engraçado que quando damos vazão aos nossos instintos, a nudez torna-se bela – mesmo que não seja análoga ao ideal clássico de beleza. Mas após o êxtase, após o clímax, sempre nos dirigimos às roupas, por quê de certa forma a nudez nos fere a visão do cotidiano, do lugar-comum. Mas a nudez dela nunca era ofensiva a mim – e ela sabia, e sentia-se bem.

À beira da cama sua feminilidade era coberta apenas pelo violão. Suas formas pequenas e também delicadas exalavam os últimos suspiros do que havíamos feito, do poema que escrevemos com nossos corpos. Seus olhos rasgados, semi-cerrados, deixavam a mulher oriental em si manifestar-se em seus sussurros roucos com mais facilidade em meio à voz perfeita, doce e límpida que cantava para mim e para si.

E ela sofria, como sofria, – bem e belamente. Ela é tão jovem e ainda assim, era como se fosse um pássaro com um eterno espinho atravessando o peito, cruzando-lhe a alma e adoçando a sua voz…

Cantou e tocou seu violão como se amanhã fosse seu calvário, e como se tal calvário fosse motivo de celebração – soou como um cisne… Sua voz não se elevava nem mesmo quando a canção falava sobre alegrias extremas ou tristezas fúnebres – embora todas as emoções pudessem ser transmitidas nesse compasso belo e único que acompanhava seu dedilhar de cordas.

Ela era linda, sua angústia era linda, sua dor era a epítome da beleza. E então, após a manhã virar tarde ela se cansou e calou-se, apoiando a cabeça no violão, olhando para mim e sorrindo de olhos fechados.

Peguei meu canivete e comecei a cortar as minhas unhas, olhando de volta, tentando esconder meu deslumbre quando – em meio a um gaguejar disfarçado – perguntei:

– E agora?

Ela jogou-se para trás com força e graça, deitando-se ao meu lado e deixando o violão escorregar para frente da cama. Virou-se para mim e respondeu:

– E agora cada um volta ao seu mundo. Eu volto aos braços de quem não me entende, de quem venderia a própria Liberdade por melhores traços do rosto. E você volta aos braços da Estrada que é sua Amante mais antiga, e de quem só poderia roubá-lo uma mulher com cem mil anos de beleza e vivência.

– Não tem que ser assim… – Eu disse – Poderíamos viver a Estrada nós quatro; eu, você, minha caneta e seu violão…

– Tem que ser assim. Só pode ser assim. Eu Amo ele que não me deseja, que não me quer. Eu e Você não nos amamos. Mas você ao menos Ama algo que sempre te acompanhou e bebeu seu sangue, seu suor, suas lágrimas. Não te acho mais Sábio por isso, nem pense que te vejo assim – mas fato é que aprendeu a coisa de pedir & dar, que existe sim nos Amores Perfeitos, embora nunca verbalizados. Continuemos a amar cada um o que cada um ama; eu a ele, você a Estrada…

Calou-se e pôs-se a chorar…

Eu já estava pronto e vestido; de fato, estava pronto antes dela começar a cantar. Beijei-lhe a testa, com meu beijo mais frio, e lambi apenas uma de suas lágrimas.

Saí sem bater a porta.

Hoje, sempre que a tristeza se abate sobre mim, lembro como seria diferente se ela tivesse dito ‘Sim’ – se a menina-pássaro resolvesse abdicar de seu espinho no peito, e procurar a beleza que eu via na Estrada, como se fôssemos uma família; eu, ela, minha caneta e seu violão…

(…)

Sobre meninas e lobos…

 

 

(…)

Em um mundo fantástico qualquer…

Quando a planície logo antes do bosque rapidamente cobriu-se de neve, o Inverno mandou a mensagem mais clara de que chegara implacável e forte. A menina parou de súbito, e mirou o horizonte por trás de si com seus olhos puxados cor de amêndoa.

Desenhava-se lentamente na nevasca a silhueta de uma forma gigantesca e negra, a caminhar em sua direção – mas ela não se moveu. Logo, um imenso lobo, escuro como um pedaço de noite tomou forma e, aproximando-se da garota, envolveu o pequenino corpo da menina, protegendo-a da fúria do Inverno.

Sem mover os olhos da linha do horizonte atrás de si, a garota disse:

-Agora você está grande, mas quando andamos lado a lado é mais baixo do que eu, já reparou? Como é que as pessoas têm medo de lobos, se são menores do que elas? Não acredito que deveriam temer lobos…

Impassível, o lobo respondeu:

-Você viveu mesmo poucos invernos, minha criança… Um lobo nunca é somente um lobo. Somos parte de um organismo maior; a alcatéia. Pequenos como você diz, mas em grande número, trazemos ao chão e levamos à morte criaturas maiores que seus mais absurdos pesadelos.

Vivemos na pele a realidade de que somos parte de algo maior, com mais plenitude do que vocês humanos vivem, pois uma alcatéia vive na força e na fraqueza de cada um de seus membros. Sentimos a escassez de caça quando um de nós adoece, e nos alimentamos com moderação para que a comida pouca se reparta entre todos. Bebemos água juntos, mas sempre com a vigília de algum membro pelas costas, para que nada nos surpreenda.

Vocês têm o fogo, nós temos as garras e as presas. Mas seu fogo, menina, protegeu os humanos da guerra? Seu fogo protegeu as fêmeas de sua tribo?

Um lobo é um pedaço do coração da alcatéia, criança, assim como você é um pedaço do coração de sua tribo; pena que saiba disso somente agora, quando todos os corações já se calaram…

-Lobos não deveriam falar — murmurou a menina, retorcendo a alma para não chorar e falhando nesse intento – pois a fala dos lobos é mais Verdadeira que essa neve, queimando as folhas nesse fogo oculto e gélido…

-Lobos não falam – disse a escuridão em volta da menina – você é que os escuta…

Calaram-se e observaram a neve, crescendo silenciosos com o diálogo que tiveram. Permaneceram impassíveis; ela livrando-se firme do frio, ele silenciosamente implacável.

(…)