Soundtrack: Lana Del Rey – Blue Jeans
Pela seda que vestia hoje, seus cabelos loiros caiam doces e leves à altura de sua cintura, fazendo um quadro perfeito ao contrastar com sua camiseta vermelha de alças finas. O corpo esguio, vestido numa calça jeans mais velha que o Sol caminhava em meio à noite, fingindo não ter rumo, enquanto ela esboçava um sorriso que não queria sair de seus rubros lábios carnudos por razão alguma. Só ela e seu anjo da guarda sabiam, no entanto, que por mais que ela conseguisse sorrir uma hora, a opacidade de seus olhos azuis como céu de outono a trairiam sempre, pois essa seria pela eternidade dos próximos minutos o espelho de sua alma.
Ela chegou de volta às ruínas de sua antiga casa nos limites da cidade, caminhou pelo cenário claramente consumido pelo fogo no passado. Mas agora as cinzas estava frias; há dez anos ninguém passava por aquele lugar.
Segurou uma antiga fotografia de casal queimada, onde atrás se via inscrições em russo. Jamais poderia imaginar como aquilo poderia ter parado ali, e tinha plena consciência que nunca saberia.
Imaginou ser um carta de amor, daquelas de tom adolescente e meloso em que se planeja um futuro irreal e belo – dobrou, e colocou no bolso. Caminhou um pouco mais, e sentou-se nos escombros de onde um dia foi a parede que dividia seu quarto do quarto de seu irmão. Começou a nevar.
O peso em seu coração, evocado pela presença naquele lugar de tragédia, era como uma tempestade em meio a uma ilha tropical. Mas eis que algum sol insistia dentro do cenário de sua alma, e pouco a pouco o vento tornou-se brisa, a chuva, uma leve garoa. Ela sabia que isso tinha algo a ver com a curiosidade que a carta em seu bolso lhe despertou.
A menina respirou o ar pesado da noite envolta em neve e fumaça de chaminés, enfiou a mão no bolso e trouxe de volta a carta às mãos.
De onde isso viera? Como fora parar ali, em sua casa? De quem e para quem era aquela carta? De que ano seria? Todas essas questões rodaram pela sua mente, mas sem esforço algum para serem respondidas. A garota apenas bebeu o líquido de cores vivazes e sabor doce que eram essas questões, esse mistério, essa carta.
Ficou ali, olhando para as letras, com os baços olhos azuis cada vez mais brilhantes. A sua análise não era fria, de fato concentrou-se apenas na superfície das questões.
Decidira que pela força impressa nas letras, e pelo pouco cuidado na escrita, o remetente era homem. E para ela, todo o mistério agora resumia-se em saber o que a menina sentira ao receber a carta – pois ela estava certa de que a carta fora recebida.
Mas e ela, a remetente? Com o incêndio, ficara sem resposta. A menina que lhe escreveu esperava uma resposta que nunca viria, como quando esperamos o refrão de uma música instrumental que não conhecemos.
A água não pôde ser evitada de escorrer daqueles olhos azuis, embora a garota estivesse sorrindo. E de dentro desse sorriso, brotara uma imaginação doce, da imagem de uma adolescente correndo pelas ruas de Moscou atrás do carteiro, dando um abraço no mesmo e lentamente caminhando de volta pra casa, lendo a carta de seu amado, onde estava escrito:
‘Berlim, 7 de maio de 1945.
Devochka moya,
Você me deu o que me manteve vivo todos esses dias de sangue e chumbo; o sabor de teus lábios.
Berlim não existe mais, sobraram apenas cinzas e história.
Voltarei aos teus braços em breve, basta que decidam quem ficará em guarda aqui, mas os soldados de minha divisão são poucos e prestigiados, logo posso requerer meu retorno imediato, sem medo de ser negado.
Não fique muito pela neve, embora eu saiba que a Primavera beija Moscou eu preciso cuidar de você, mesmo de longe.
O tempo de chumbo e sangue se foi, e o futuro guarda um mundo livre, sem tensão ou guerras.
Devochka moya, Ya tebya lyublyu,
Yuri.’
Coberta em neve, a moça dos olhos azuis consumira-se em lágrimas de emoção, após mentalmente redigir a carta para a menina russa. Como que acordada de um transe, percebera que a noite havia caído sobre o mundo.
Ela se sacudiu, batendo a neve de seus ombros e seu corpo, enquanto levava a carta ao bolso. Levantou-se tremendo de frio e morrendo de fome – mas com um sorriso no rosto. Caminhou em direção à escuridão que separava as ruínas em que se encontrava, da cidade em que vivia, abraçando a si mesma.
A alegria a iluminava, enquanto a noite envolvia suas belas formas a caminho de sua verdadeira casa…