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O fogo crepitava lá fora na colossal fogueira, numa noite que nevava em plena Primavera. Ainda assim, o povoado continuava a comemorar e lançar lenha ao fogo e álcool pra dentro de suas bocas e suas almas. O doutor, ancião de olhar profundo e curta barba branca, observava isso de longe, com tanta frieza no coração que nem mesmo o calor de mil fogueiras poderia sequer arranhar o gelo em seu peito.
Quando a última badalada da meia-noite se deu em seu ruidoso relógio de parede, ele ouviu três batidas espaçadas no portal de entrada. Suspirou, mas sem hesitar dirigiu-se à porta e abriu a mesma – permitindo um pavoroso ar frio adentrar a sala principal. A figura do lado de fora sorria, e sorria apenas. O senhor, velho mas de feições firmes, meneou a cabeça e respondeu o sorriso com nada mais que cordialidade, a figura sorridente entendeu o cumprimento, entrou e pôs-se a esperar o doutor.
O velho fechou a porta e cessou o frio físico, pois havia por ali uma fogueira e duas poltronas que bem serviam a sala de calor. Mas o frio em seu coração – se é que podia – foi intensificado pela figura sorridente que adentrara a sala. Tratava-se de um homem com não mais que vinte anos, porém alto e de feições que combinavam a dureza de uma provável Vida no campo, com o frescor da pouca idade, evidenciado com um incessante e perturbador sorriso. Ele observou o velho senhor, e quando percebeu seu sinal positivo, calmamente serviu-se de conhaque e sentou-se em uma das poltronas, enquanto observava o doutor fazer o mesmo.
Olharam-se durante um tempo indeterminado, algo entre segundos e poucos minutos, quando o jovem interrompeu o silêncio:
Jovem: Me chamou mais cedo, Doutor. O trato é que eu somente viria buscá-lo exatos dez segundos antes do primeiro raio de Sol tocar sua casa. Quando firmamos o mesmo eu jurava que havia sido claro, e contava que sua inteligência nos pouparia do desgastante diálogo no qual vocês humanos imploram por perdão ou mais tempo… Ou estarei eu sendo precipitado em meu julgamento, e você ainda irá me surpreender, depois de todas as criações que deu à luz o intelecto superior que lhe conferi em troca de tua alma?
Velho: Não chamei você, meu caro, para pedir Tempo ou Perdão. Vendi minha alma a um demônio, e mesmo que você ou Deus me perdoassem eu mesmo não me perdoaria na Eternidade. Sabes bem que os que imploram, normalmente tentam comprar de ti o alívio de dívida, e tudo o que te ofereci foi conhaque e uma poltrona. Eu o chamei aqui sim, para negociar, mas não para pedir que ignoremos o Passado ou nosso Contrato…
Jovem: Torne, por favor, o ambiente e nosso diálogo mais claros com tuas palavras, eu lhe rogo, Doutor…
Velho: Eu desejo que em troca de tempo extra indeterminado, você abençoe minha existência com algum toque de tua existência demoníaca… (Suspira, olha para baixo, e depois olha para as chamas)
Veja as chamas. Sei bem que fulgurações de natureza infinitamente maiores que essa aguardam-me, ansiosas por provar de minha alma para todo o sempre. E eu temo isso, não há como negar. No entanto… (perde-se em sua reflexão, ou finge fazê-lo com maestria…)
Jovem: (Pigarreia) No entanto…
Velho: …No entanto, eu, portentor do maior intelecto que já existiu, tomei como desafio tentar convencê-lo a mudar meu curso, mas de acordo com a tua, não a minha vontade. Meu desejo não é ignorar minha pena, tampouco abrandá-la, mas de fato mudar o curso da mesma, de acordo com as variáveis da mente de meu carrasco – um presente que pretendia me conferir -, como último acesso aos recursos superiores da inteligência excelsior pela qual vendi minha alma.
O que me diz, Demônio?
Jovem: Em primeira instância eu digo que sim, fui mesmo precipitado ao julgar as razões pelas quais me chamou aqui…
Vivi várias Eras dos homens, e nunca uma alma me surpreendeu duas vezes, Doutor. A tua primeira vez, desconfio que já sabes, foi a natureza de teu próprio pedido; inteligência suprema. Acostumado às mentes simples, que vendem-se por tão pouco – tão menos do que poderiam eles mesmos alcançarem sem muito esforço – eu notei em ti uma aura que somente notei no criador do aço, milênios atrás. E agora, essa inusitada proposta desperta em mim algo de humano, que não sinto há milênios também, desde que um belo par de olhos e seios se foi da Terra ao lugar de onde Caí…
Doutor, eu pasmo de nada tenho valia, poderia me dar alguma sugestão de qual poderia ser a alteração em nosso contrato?
Velho: Poderia, mas não o farei. Foi bem dito por mim, através desses lábios que o conhaque derreteu por mais de setenta anos, que seria tu a decidir meu Destino, e não eu…
Jovem: HAHAHAHAHAHAHAHA!!!! Velho amaldiçoadamente sagaz!!!! Percebeste, antes de dar lugar à tua palavra o teste que eu iria lhe propor, não é? A tua honestidade conferiu a ti muitos pontos, mas… Mas também sabias disso de antemão, não estou certo?
Pois bem, é fato que o relógio corre e teu contrato ainda está de pé, sem nem mesmo que eu comece a considerar a variável de tua proposta, que comecei a conjecturar sobre somente agora. Dê-me até dez minutos antes de teu prazo final, e irei entregar um veredicto digno do diálogo que tivemos, e do aproveitamento fantástico da dádiva que lhe conferi – estamos combinados?
Velho: E quem sou eu Mestre, para revoltar-me ante aquele que possuirá minha essência antes do Sol beijar a Terra?
O jovem agora sim demonstrou a sua natureza demoníaca, mas somente através de seus olhos.
Sua aparência continuou a mesma, mas o fogo que emanava da fogueira parecia que era absorvido pela suas íris, que lentamente tornaram-se vermelhas, e suas pupilas, lentamente tornaram-se fendas. Ele pôs-se a meditar mirando o fogo, e tornou a Noite de Walpurgis a primeira de todas as torturas à alma do Doutor.
O velho, por sua vez, serviu-se de conhaque, e sentou de volta em sua poltrona, sentindo cada minuto pesando em seu coração como um século de guerras pesaria numa pátria. Desesperado, mas incapaz de tirar a própria Vida, ele foi obrigado a esperar, e sentir seu coração indo à boca, todas as vezes que o relógio quebrava o silêncio para visar que Walpurgis se aproximava de seu fim.
Quando dado o advento de seu prazo, o demônio vira-se para ele e quebra o silêncio, sendo agora mais direto em suas palavras – senão mais ríspido.
Demônio: Seu prazo se aproxima, doutor. Seja direto e fale seu coração em cada resposta a partir de agora. Diga-me por quê deseja que eu revogue nosso contrato?
Doutor: Quero conhecer mais coisas.
Demônio: QUAIS?
Doutor: O Amor. O Amor é uma delas…
Demônio: E por quê eu deveria deixá-lo partir, renunciando ao meu direito e à tradição de mais de setecentos mil contratos firmados e cobrados devidamente?
Doutor: Porquê eu sou Único, acima do senso-comum da expressão. E por quê sei que sua curiosidade anda acima de sua honra à assinatura em sangue que me conferiu essa individualidade titânica.
Demônio: Verdade Doutor… (Bem calmo)
Deixar-te-ei partir… Mas não sem uma bênção de minha melhor safra…
Doutor: E qual seria, Mestre?
Demônio: Imortalidade, Doutor. Você irá se tornar imortal.
Doutor: Não! Deixa-me morrer!
Demônio: Agora é tarde, meu caro. Tarde para perceber que embora você tenha sido o mais inteligente dos mortais, ainda assim era um mortal. E que fui eu quem lhe conferiu essa dádiva da clareza de pensamento, onde teu fascínio te pregou uma peça e me conferiu ainda maior capacidade de ser teu algoz.
Doutor. Dou-tor… Eu vivencio o Espírito do Tempo, antes dele ter sido criado. E você vai partilhar de minha visão agora. Era uma bênção da existência demoníaca que desejavas? Dar-te-ei meus olhos, mas sem a pupila em fenda ou as íris escarlates; darei somente a essência. E não somente verá tuas criações deturpadas, utilizadas pela mentes que mais se assemelham aos esgotos, como verás a nobreza das coisas mais belas e simples, envelhecerem e descascarem como tinta fraca, devido à incompreensão humana…
E eu… Eu estarei lá quando conheceres o Amor, repetidas vezes, e lá estarei quando enterrá-los repetidas vezes idem.
E virá o Tempo em que você terá vivido tantas vezes esse sublime aspecto da existência, que os anjos terão inveja de ti, e Deus irá vê-lo com bons olhos, mas nunca tu poderás adentrar o Paraíso. E viverás ainda além, a ponto de ver o Amar jogado à classe de escória dos verbos, dividindo a sarjeta das palavras, das bocas, e dos corações pequenos.
Tu verás o Amor ser vulgarizado, Doutor…
Tu invejarás o Inferno…
E nós não poderemos aceitá-lo.
Doutor: Não! Perdoa-me, toma-me, pois de fato que já amo e sou correspondido! Eu menti, menti! Amo a jovem que me serve em casa, e iríamos nos casar! Não posso ver esse futuro! Toma-me demônio, e dilacera-me a alma, mas não permita-me ver o Amor maculado – nem agora, nem nunca!
Demônio: Eu sei que mentiu. E é justamente por isso que lhe conferi minha bênção…
…Agora, conviva com isso, meu caro.
Bom fim de Walpurgis!
E o demônio desfez-se em névoa.
Névoa que cheirava ao perfume dela, por quem o velho condenara a própria alma pela segunda vez…
(…)