Sob a fria luz da manhã…

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Lágrimas de sangue. O tapa de seu namorado rompeu alguma coisa dentro dos seus olhos e agora ela está chorando sangue, literalmente. Uma pessoa sarcástica ou irônica iria pontuar o paradoxo de que seu sangue, sob a luz fraca do poste e da noite sem lua, combina perfeitamente com seu cabelo encaracolado e vermelho, dando um toque de beleza à sua tragédia. E de alguma forma, os olhos de um castanho claro que choram sangue realmente conferem um certo tom de belo à cena dessa pobre garota, sentada nas escadas do metrô fechado.
Ela ligou para um amigo que apareceu bem rápido, e que sem falar nada, sentou-se ao seu lado enquanto ela encostou a cabeça em seu ombro, chorando suas lágrimas de sangue, colorindo com um tom de vermelho o moletom branco dele.

Verdade seja dita: ela não conseguia pensar em vingança. Tudo o que ela conseguia pensar era quanto tudo ficou mais claro depois desse tapa, e então perguntou a ele:

-Porque você sempre esteve por perto? Porque você manteve essa minha amizade de merda, com tantas mulheres ao seu redor que morreriam pra ter uma chance contigo?

-Pára de me perguntar merda, minha querida, pode ser?

-Não… Sério…

-Porque você é você, mesmo que não tenha sido você mesma nos últimos anos. E eu sou quem sou; um grande idiota apaixonado por ti…

-Porque esperar por mim? Poderia levar dois anos como levou, mas poderia levar vinte ou mais…

-Eu não esperei; eu vivi enquanto você sobrevivia. Eu senti coisas enquanto tudo o que você podia fazer era imaginar como as coisas poderiam ser diferentes. Meu mundo não parou… Você… Certeza que quer ouvir minha sinceridade agora mesmo?

-Sim… – Ela espirrou – Por favor…!

-Bom, não tem muito o que ser dito, eu acho. Eu estive por perto de ti, mas vi coisas, estive com pessoas e eu também tinha que saborear a liberdade. Quando você disse que se sentia livre ao lado desse cara que te deu um tapa na cara alguns minutos atrás, eu tipo… Eu previ esse tapa.

-E você não disse uma palavra, porque não vale a pena aconselhar pessoas apaixonadas, certo?

-Certo.

-Como você pode ser tão frio? Como conseguiu ser tão frio?

-Só pessoas que realmente dão a mínima por você conseguem ver você se enforcando sem ‘fazer alguma coisa’. Eu vi você se enforcando, mas tudo o que eu podia fazer era sentar e assistir.

-Mas e se eu me enforcasse de verdade?

-Mas não iria conseguir… A corda era fraca.

-E quanto à Liberdade… Você sentiu isso com tanta força e tão, tipo, lá no fundo que pode ter certeza de que o que tava sentindo era Liberdade?

-Não… E sim. Eu nunca senti Liberdade ou Paz, lá no fundo, lá dentro, mas vi tantas pessoas sentindo a Vida de maneiras tão magníficas que eu posso dizer, com certeza, que seu último relacionamento não poderia sequer fazer uma pequena sombra aos pés da Liberdade Verdadeeeeeeeira.
*Cinco minutos de silêncio*
-Você vai continuar por perto? Vai ter a mesma paciência comigo; de coração partido, feia e se afogando em auto-piedade? Olha, eu posso ser um ser humano de merda nesses próximos tempos…

-Eu vou te tratar como o fogo trata todas as coisas. Você vai decidir – queira ou não – se vai ser um pedaço de madeira e queimar ou um pedaço de ferro e virar uma espada…

-Porque você não foi assim antes? Porque agora? Eu me sinto tão fraca…

-Agora você está pronta. Só agora, depois dessas lágrimas de sangue é que seus olhos vão enxergar as coisas como realmente são. Aproveite… Em inglês isso se chama ‘The cold light of day’…

-Lembro de um trecho de ‘Tears of the Dragon’ quando você fala The cold light of day…

Eles caminharam pra dentro do metrô – agora aberto – descendo as escadas, e pegaram o primeiro trem para onde achavam que não haveria sol.
Ainda precisavam de um pouquinho de noite pra acertar as coisas…

O guaxinim de Schroedinger.

 

1 – Esse bicho aí da sua caixa tá miando demais, não consigo fazer meu trabalho!

2 – É um guaxinim…

1 – Não importa o que seja, eu quero isso for… Porque um guaxinim tá miando?

2 – Na verdade essa caixa não é minha, é do neto do Erwin Schroedinger. Sempre teve um guaxinim dentro, mas diziam que se tratava de um gato porque falar “Schroedinger’s Raccoon” é mais difícil do que falar “Schroedinger’s Cat“…

1 – Mas pela idade da teoria, não importa o paradoxo inicial, esse guaxinim já deveria estar morto!

2 – É um guaxinim zumbi.

1 – 0k, mas porque ele tá miando, você ainda não explicou.

2 – Ele mia por crise de identidade e pela pressão da força do Pensamento Coletivo.

1 – Mas peraí… Na verdade isso não era uma caixa teórica, com um gato teórico dentro, sendo vítima de um mecanismo teórico?

2 – Escuta, a caixa não é minha, é do Schroedinger, e não é um gato, é um guaxinim! Eu vou levar o coitado pra passear porque você tá muito negativo hoje, e volto quando a nuvenzinha preta sair de cima da sua cabeça, TCHAU!

 

 

 

FIM.

 

 

 

Suor & Fumaça.

(…)
Ela saiu do banho secando os cabelos. Seu corpo voluptuoso, de pele clara queimada de sol estava coberto de pequenas gotículas de água, e nada mais cobria essa obra dos deuses senão o olhar dele; que já estava vestido quando ela saiu do banho. A camiseta seca grudava na pele suada e abafava a umidade causada pelo que os dois haviam feito há pouco.
Mas o quarto pulsava ainda…
O quarto ainda pulsava, cheirava a sexo ainda, e no ouvido dos dois ainda ecoavam os gemidos um do outro. Então ao cheiro de sexo misturou-se o cheiro de Morte do charuto barato de chocolate que ele amava. À meia-luz icônica, ela disse – acendendo um cigarro -, displicente e sem cravar seus olhos azuis nele:
-Dorme aí…
-Nunca dormi abraçado – disse ele – e nem quero aprender a fazer isso agora. – engatou com a voz arranhando – mas me diga; não vai mesmo largar dele?
-Não. – ela respondeu com simplicidade.
-Acho que fui longe demais, saindo com vocês como se fosse seu amigo. Ele ainda me deu carona até em casa, e depois eu vim pra cá…
-Esquece isso, me dá uns carinhos… – ela disse, quase ronronando, engatinhando sobre a cama em direção a ele.
Ele ficou meio estático. A fumaça deixava seus olhos vermelhos. Conjecturou alguns milissegundos e questionou-a:
-Eu te deixaria sozinha, né? Mesmo ao te lado, te deixaria sozinha, não é por isso?
-Sim – confirmou a moça, deitando a cabeça no colo dele – Você tem um castelo no ar. Tem o mais lindo castelo no ar que existe, mas eu vivo aqui na Terra. Você é demais, mas é demais pra qualquer mulher, meu anjo… – e lágrimas começaram a escorrer de seu rosto.
Ele abraçou-a com força, carinhosamente, e lambeu cada gotícula salgada que se desprendeu dos olhos azuis da menina.
Ele, sempre ele; apagou seu charuto nas próprias costelas para não chorar também.

(…)

O que é & o que nunca deveria ser…

Trilha Sonora: What is and what should never be – Led Zeppelin

(…)

Depois de eu ter riscado o mármore do Céu com minhas garras. Depois dela rasgar as minhas costas com as dela. Depois dela ninar-se em meu peito ainda arfante, depois do beijo quente e úmido de quatro séculos de duração em meio a quinze segundos. Depois de eu me vestir enquanto ela se espreguiçava por toda a extensão da cama.

Depois disso tudo ela ainda sabia sofrer.

Depois de dormir, ela levantou-se de meu peito, agarrou o violão e sentou-se à beira da cama…

Engraçado que quando damos vazão aos nossos instintos, a nudez torna-se bela – mesmo que não seja análoga ao ideal clássico de beleza. Mas após o êxtase, após o clímax, sempre nos dirigimos às roupas, por quê de certa forma a nudez nos fere a visão do cotidiano, do lugar-comum. Mas a nudez dela nunca era ofensiva a mim – e ela sabia, e sentia-se bem.

À beira da cama sua feminilidade era coberta apenas pelo violão. Suas formas pequenas e também delicadas exalavam os últimos suspiros do que havíamos feito, do poema que escrevemos com nossos corpos. Seus olhos rasgados, semi-cerrados, deixavam a mulher oriental em si manifestar-se em seus sussurros roucos com mais facilidade em meio à voz perfeita, doce e límpida que cantava para mim e para si.

E ela sofria, como sofria, – bem e belamente. Ela é tão jovem e ainda assim, era como se fosse um pássaro com um eterno espinho atravessando o peito, cruzando-lhe a alma e adoçando a sua voz…

Cantou e tocou seu violão como se amanhã fosse seu calvário, e como se tal calvário fosse motivo de celebração – soou como um cisne… Sua voz não se elevava nem mesmo quando a canção falava sobre alegrias extremas ou tristezas fúnebres – embora todas as emoções pudessem ser transmitidas nesse compasso belo e único que acompanhava seu dedilhar de cordas.

Ela era linda, sua angústia era linda, sua dor era a epítome da beleza. E então, após a manhã virar tarde ela se cansou e calou-se, apoiando a cabeça no violão, olhando para mim e sorrindo de olhos fechados.

Peguei meu canivete e comecei a cortar as minhas unhas, olhando de volta, tentando esconder meu deslumbre quando – em meio a um gaguejar disfarçado – perguntei:

– E agora?

Ela jogou-se para trás com força e graça, deitando-se ao meu lado e deixando o violão escorregar para frente da cama. Virou-se para mim e respondeu:

– E agora cada um volta ao seu mundo. Eu volto aos braços de quem não me entende, de quem venderia a própria Liberdade por melhores traços do rosto. E você volta aos braços da Estrada que é sua Amante mais antiga, e de quem só poderia roubá-lo uma mulher com cem mil anos de beleza e vivência.

– Não tem que ser assim… – Eu disse – Poderíamos viver a Estrada nós quatro; eu, você, minha caneta e seu violão…

– Tem que ser assim. Só pode ser assim. Eu Amo ele que não me deseja, que não me quer. Eu e Você não nos amamos. Mas você ao menos Ama algo que sempre te acompanhou e bebeu seu sangue, seu suor, suas lágrimas. Não te acho mais Sábio por isso, nem pense que te vejo assim – mas fato é que aprendeu a coisa de pedir & dar, que existe sim nos Amores Perfeitos, embora nunca verbalizados. Continuemos a amar cada um o que cada um ama; eu a ele, você a Estrada…

Calou-se e pôs-se a chorar…

Eu já estava pronto e vestido; de fato, estava pronto antes dela começar a cantar. Beijei-lhe a testa, com meu beijo mais frio, e lambi apenas uma de suas lágrimas.

Saí sem bater a porta.

Hoje, sempre que a tristeza se abate sobre mim, lembro como seria diferente se ela tivesse dito ‘Sim’ – se a menina-pássaro resolvesse abdicar de seu espinho no peito, e procurar a beleza que eu via na Estrada, como se fôssemos uma família; eu, ela, minha caneta e seu violão…

(…)

Sobre meninas e lobos…

 

 

(…)

Em um mundo fantástico qualquer…

Quando a planície logo antes do bosque rapidamente cobriu-se de neve, o Inverno mandou a mensagem mais clara de que chegara implacável e forte. A menina parou de súbito, e mirou o horizonte por trás de si com seus olhos puxados cor de amêndoa.

Desenhava-se lentamente na nevasca a silhueta de uma forma gigantesca e negra, a caminhar em sua direção – mas ela não se moveu. Logo, um imenso lobo, escuro como um pedaço de noite tomou forma e, aproximando-se da garota, envolveu o pequenino corpo da menina, protegendo-a da fúria do Inverno.

Sem mover os olhos da linha do horizonte atrás de si, a garota disse:

-Agora você está grande, mas quando andamos lado a lado é mais baixo do que eu, já reparou? Como é que as pessoas têm medo de lobos, se são menores do que elas? Não acredito que deveriam temer lobos…

Impassível, o lobo respondeu:

-Você viveu mesmo poucos invernos, minha criança… Um lobo nunca é somente um lobo. Somos parte de um organismo maior; a alcatéia. Pequenos como você diz, mas em grande número, trazemos ao chão e levamos à morte criaturas maiores que seus mais absurdos pesadelos.

Vivemos na pele a realidade de que somos parte de algo maior, com mais plenitude do que vocês humanos vivem, pois uma alcatéia vive na força e na fraqueza de cada um de seus membros. Sentimos a escassez de caça quando um de nós adoece, e nos alimentamos com moderação para que a comida pouca se reparta entre todos. Bebemos água juntos, mas sempre com a vigília de algum membro pelas costas, para que nada nos surpreenda.

Vocês têm o fogo, nós temos as garras e as presas. Mas seu fogo, menina, protegeu os humanos da guerra? Seu fogo protegeu as fêmeas de sua tribo?

Um lobo é um pedaço do coração da alcatéia, criança, assim como você é um pedaço do coração de sua tribo; pena que saiba disso somente agora, quando todos os corações já se calaram…

-Lobos não deveriam falar — murmurou a menina, retorcendo a alma para não chorar e falhando nesse intento – pois a fala dos lobos é mais Verdadeira que essa neve, queimando as folhas nesse fogo oculto e gélido…

-Lobos não falam – disse a escuridão em volta da menina – você é que os escuta…

Calaram-se e observaram a neve, crescendo silenciosos com o diálogo que tiveram. Permaneceram impassíveis; ela livrando-se firme do frio, ele silenciosamente implacável.

(…)

“Happy Hour”

 

[…]

Reunião pós-expediente e a chefe, trêbada, vai conversar com um dos funcionários da repartição…

Ela: E aíííí… Gostando da festinha?

Ele: Não. Não me dou bem em círculos sociais obrigatórios – de fato eu os odeio. Mas estou sem criar atritos com ninguém. O índice de problemas e exageros hoje parece-me que será baixo…

Ela: Nossa, que mau humor! Você tá sempre tão sorridente, achei que iiiiiia se divertir mais hoje…

Ele: Achou é? Que bom que me achou sorridente… Sabe, agora fiquei realmente feliz!

Ela: Aaaaaaaah é? Porquê?

Ele: Se consegui convencer a líder dos macacos, os símios abaixo dela serão fáceis de enganar.

Ela: Eeeeeeeeei! Como você fala assim? Tá duvidando de eu que eu sou esperta? Acha eu que eu cheguei naonde tô sendo burra?

Ele: Jamais! Eu acho você inteligente, juro. Só não cometa o erro de comparar-se a mim,ma chérie…

Ela: Amanhã eu vô lembrá disso tudo!

Ele: Não vai não…

O funcionário chama o dançarino gostosão, coloca uma nota de $20 na cueca dele e fala no ouvido do cara:

-Derruba essa mulher de tequila.

Sai andando, paga a conta e sorri cínico acenando pra todo mundo, enquanto vai embora. Um sujeito bate no braço do outro e aponta o Funcionário:

-Esse maluco, faça chuva ou faça sol, tá sempre sorrindo. Admiro gente assim…

[…]

Metrô.

 

Um casal, tremendo no sacolejante vagão semi-vazio do último trem do metrô…

Ela: Você gosta daqui, né?
Ele: Gosto…
Ela: Por quê?
Ele: Não sei…  Acho que as razões caberiam num livro, ou numa lista bastante extensa. Olha, me perdoa pelo clichê de mencionar ‘caberiam num livro‘…
Ela: Sossego, mas acho que caberiam mesmo. Tem um sossego, uma calma aqui nesse horário, ou no ambiente, ou na mistura dos dois. Acho que talvez tenhamos que recorrer a alguns neologismos pra descrições de ambientes como esse, e isso nos atrai a esses lugares-comuns, aos clichês; medo do novo…
Ele: Boa reflexão… É sua?
Ela: Por quê não seria, hein? (bem indignada, mas sorrindo)
Ele: Sei lá, eu meio que estou viajando. Não que eu queira ou possa te colocar numa prateleira agora, mas você é o som por trás do som ambiente – viajar no metrô da última hora é Meu Momento…
Ela: Eu sei, relaxe… Sei que você não me colocaria numa prateleira – foge delas como o Diabo foge da Cruz! Hahahaha! Aí, outro lugar-comum lingüístico… Mas sério, te entendo.
Ele: Ah! A gente tá sendo muito cortês, não acha? Pro Inferno tudo isso! Eu gosto daqui por quê me livro de todos, e se te trouxe aqui pro meu momento, é por que sei que você iria se incorporar ao sistema. Relaxa! Aqui eu fico livre de tudo, mas principalmente das prateleiras!
Ela: Peraê… Que prateleiras você fala? Serão as mesmas que eu falo?
Ele: Sim! As prateleiras EM QUE as pessoas nos colocam… Eu mesmo, normalmente fico na prateleira dos amigos-nerds, ou na prateleira dos amigos-filósofos – mas sempre na seção dos amigos-chatos tem espaço pra mim… E você?
Ela: Hmmmm… Fico na prateleira dos Anti-sociais, CDF’s e Esquisitos, eu aaaaacho. Mas nem sei se sou muito adepta à idéia de que me conferem prateleiras…
Ele: Por quê não? Todo mundo precisa de um rótulo, nem que seja o de ‘imprevisível‘. As pessoas lá de cima não podem conviver com individualidades, meu anjo. Nem podem conviver com poesia, a maioria delas, e é por isso que existem as prateleiras na mente de cada um – pra não terem que dividir as pessoas por-e-com o Coração, mas por imagem e comportamento.
Ela: Ah, isso eu sei. Mas sou eu mesma que penso melhor do Mundo. Talvez existam um ou dois que não me conferem prateleiras, tenho esperança disso, sabe?
Ele: Um ou dois? Um deles sou eu, o outro é você!
(Dão risada juntos…)
Ela: Voltando ao metrô… Aqui, e daqui… Saem as pessoas, esperanças, flores e mão-de-obra de toda uma parcela da cidade. Acho isso fantástico! Cada trem traz uma safra de possibilidades infinitas, belezas que ninguém repara. Traz leitores de livros mil, estudantes de cursos randômicos, trajes informais e formais de toda estirpe…
Ele: …E diálogos inacabados, darling!
(Ele pega Ela pelo braço e puxa, com carinho e força. Se levantam rápido, pra sair tropeçando e correndo do vagão…)

Chegaram à sua estação. Saltaram sorrindo, extasiados com toda a atmosfera que entregava uma noite de diálogos forjados no mundo das fadas que existia detrás das paredes daquele amontoado de trilhos e túneis subterrâneos…

Noite de Walpurgis…

 

(…)

O fogo crepitava lá fora na colossal fogueira, numa noite que nevava em plena Primavera. Ainda assim, o povoado continuava a comemorar e lançar lenha ao fogo e álcool pra dentro de suas bocas e suas almas. O doutor, ancião de olhar profundo e curta barba branca, observava isso de longe, com tanta frieza no coração que nem mesmo o calor de mil fogueiras poderia sequer arranhar o gelo em seu peito.
Quando a última badalada da meia-noite se deu em seu ruidoso relógio de parede, ele ouviu três batidas espaçadas no portal de entrada. Suspirou, mas sem hesitar dirigiu-se à porta e abriu a mesma – permitindo um pavoroso ar frio adentrar a sala principal. A figura do lado de fora sorria, e sorria apenas. O senhor, velho mas de feições firmes, meneou a cabeça e respondeu o sorriso com nada mais que cordialidade, a figura sorridente entendeu o cumprimento, entrou e pôs-se a esperar o doutor.
O velho fechou a porta e cessou o frio físico, pois havia por ali uma fogueira e duas poltronas que bem serviam a sala de calor. Mas o frio em seu coração – se é que podia – foi intensificado pela figura sorridente que adentrara a sala. Tratava-se de um homem com não mais que vinte anos, porém alto e de feições que combinavam a dureza de uma provável Vida no campo, com o frescor da pouca idade, evidenciado com um incessante e perturbador sorriso. Ele observou o velho senhor, e quando percebeu seu sinal positivo, calmamente serviu-se de conhaque e sentou-se em uma das poltronas, enquanto observava o doutor fazer o mesmo.
Olharam-se durante um tempo indeterminado, algo entre segundos e poucos minutos, quando o jovem interrompeu o silêncio:

Jovem: Me chamou mais cedo, Doutor. O trato é que eu somente viria buscá-lo exatos dez segundos antes do primeiro raio de Sol tocar sua casa. Quando firmamos o mesmo eu jurava que havia sido claro, e contava que sua inteligência nos pouparia do desgastante diálogo no qual vocês humanos imploram por perdão ou mais tempo… Ou estarei eu sendo precipitado em meu julgamento, e você ainda irá me surpreender, depois de todas as criações que deu à luz o intelecto superior que lhe conferi em troca de tua alma?

Velho: Não chamei você, meu caro, para pedir Tempo ou Perdão. Vendi minha alma a um demônio, e mesmo que você ou Deus me perdoassem eu mesmo não me perdoaria na Eternidade. Sabes bem que os que imploram, normalmente tentam comprar de ti o alívio de dívida, e tudo o que te ofereci foi conhaque e uma poltrona. Eu o chamei aqui sim, para negociar, mas não para pedir que ignoremos o Passado ou nosso Contrato…

Jovem: Torne, por favor, o ambiente e nosso diálogo mais claros com tuas palavras, eu lhe rogo, Doutor…

Velho: Eu desejo que em troca de tempo extra indeterminado, você abençoe minha existência com algum toque de tua existência demoníaca… (Suspira, olha para baixo, e depois olha para as chamas)
Veja as chamas. Sei bem que fulgurações de natureza infinitamente maiores que essa aguardam-me, ansiosas por provar de minha alma para todo o sempre. E eu temo isso, não há como negar. No entanto… (perde-se em sua reflexão, ou finge fazê-lo com maestria…)

Jovem: (Pigarreia) No entanto…

Velho: …No entanto, eu, portentor do maior intelecto que já existiu, tomei como desafio tentar convencê-lo a mudar meu curso, mas de acordo com a tua, não a minha vontade. Meu desejo não é ignorar minha pena, tampouco abrandá-la, mas de fato mudar o curso da mesma, de acordo com as variáveis da mente de meu carrasco – um presente que pretendia me conferir -, como último acesso aos recursos superiores da inteligência excelsior pela qual vendi minha alma.
O que me diz, Demônio?

Jovem: Em primeira instância eu digo que sim, fui mesmo precipitado ao julgar as razões pelas quais me chamou aqui…
Vivi várias Eras dos homens, e nunca uma alma me surpreendeu duas vezes, Doutor. A tua primeira vez, desconfio que já sabes, foi a natureza de teu próprio pedido; inteligência suprema. Acostumado às mentes simples, que vendem-se por tão pouco – tão menos do que poderiam eles mesmos alcançarem sem muito esforço – eu notei em ti uma aura que somente notei no criador do aço, milênios atrás. E agora, essa inusitada proposta desperta em mim algo de humano, que não sinto há milênios também, desde que um belo par de olhos e seios se foi da Terra ao lugar de onde Caí…
Doutor, eu pasmo de nada tenho valia, poderia me dar alguma sugestão de qual poderia ser a alteração em nosso contrato?

Velho: Poderia, mas não o farei. Foi bem dito por mim, através desses lábios que o conhaque derreteu por mais de setenta anos, que seria tu a decidir meu Destino, e não eu…

Jovem: HAHAHAHAHAHAHAHA!!!! Velho amaldiçoadamente sagaz!!!! Percebeste, antes de dar lugar à tua palavra o teste que eu iria lhe propor, não é? A tua honestidade conferiu a ti muitos pontos, mas… Mas também sabias disso de antemão, não estou certo?
Pois bem, é fato que o relógio corre e teu contrato ainda está de pé, sem nem mesmo que eu comece a considerar a variável de tua proposta, que comecei a conjecturar sobre somente agora. Dê-me até dez minutos antes de teu prazo final, e irei entregar um veredicto digno do diálogo que tivemos, e do aproveitamento fantástico da dádiva que lhe conferi – estamos combinados?

Velho: E quem sou eu Mestre, para revoltar-me ante aquele que possuirá minha essência antes do Sol beijar a Terra?

O jovem agora sim demonstrou a sua natureza demoníaca, mas somente através de seus olhos.

Sua aparência continuou a mesma, mas o fogo que emanava da fogueira parecia que era absorvido pela suas íris, que lentamente tornaram-se vermelhas, e suas pupilas, lentamente tornaram-se fendas. Ele pôs-se a meditar mirando o fogo, e tornou a Noite de Walpurgis a primeira de todas as torturas à alma do Doutor.
 O velho, por sua vez, serviu-se de conhaque, e sentou de volta em sua poltrona, sentindo cada minuto pesando em seu coração como um século de guerras pesaria numa pátria. Desesperado, mas incapaz de tirar a própria Vida, ele foi obrigado a esperar, e sentir seu coração indo à boca, todas as vezes que o relógio quebrava o silêncio para visar que Walpurgis se aproximava de seu fim.
 Quando dado o advento de seu prazo, o demônio vira-se para ele e quebra o silêncio, sendo agora mais direto em suas palavras – senão mais ríspido.

Demônio: Seu prazo se aproxima, doutor. Seja direto e fale seu coração em cada resposta a partir de agora. Diga-me por quê deseja que eu revogue nosso contrato?

Doutor: Quero conhecer mais coisas.

DemônioQUAIS?

Doutor: O Amor. O Amor é uma delas…

Demônio: E por quê eu deveria deixá-lo partir, renunciando ao meu direito e à tradição de mais de setecentos mil contratos firmados e cobrados devidamente?

Doutor: Porquê eu sou Único, acima do senso-comum da expressão. E por quê sei que sua curiosidade anda acima de sua honra à assinatura em sangue que me conferiu essa individualidade titânica.

Demônio: Verdade Doutor… (Bem calmo)
Deixar-te-ei partir… Mas não sem uma bênção de minha melhor safra…

Doutor: E qual seria, Mestre?

Demônio: Imortalidade, Doutor. Você irá se tornar imortal.

Doutor: Não! Deixa-me morrer!

Demônio: Agora é tarde, meu caro. Tarde para perceber que embora você tenha sido o mais inteligente dos mortais, ainda assim era um mortal. E que fui eu quem lhe conferiu essa dádiva da clareza de pensamento, onde teu fascínio te pregou uma peça e me conferiu ainda maior capacidade de ser teu algoz.
Doutor. Dou-tor… Eu vivencio o Espírito do Tempo, antes dele ter sido criado. E você vai partilhar de minha visão agora. Era uma bênção da existência demoníaca que desejavas? Dar-te-ei meus olhos, mas sem a pupila em fenda ou as íris escarlates; darei somente a essência. E não somente verá tuas criações deturpadas, utilizadas pela mentes que mais se assemelham aos esgotos, como verás a nobreza das coisas mais belas e simples, envelhecerem e descascarem como tinta fraca, devido à incompreensão humana…
E eu… Eu estarei lá quando conheceres o Amor, repetidas vezes, e lá estarei quando enterrá-los repetidas vezes idem.
E virá o Tempo em que você terá vivido tantas vezes esse sublime aspecto da existência, que os anjos terão inveja de ti, e Deus irá vê-lo com bons olhos, mas nunca tu poderás adentrar o Paraíso. E viverás ainda além, a ponto de ver o Amar jogado à classe de escória dos verbos, dividindo a sarjeta das palavras, das bocas, e dos corações pequenos.
Tu verás o Amor ser vulgarizado, Doutor…
Tu invejarás o Inferno…
E nós não poderemos aceitá-lo.

Doutor: Não! Perdoa-me, toma-me, pois de fato que já amo e sou correspondido! Eu menti, menti! Amo a jovem que me serve em casa, e iríamos nos casar! Não posso ver esse futuro! Toma-me demônio, e dilacera-me a alma, mas não permita-me ver o Amor maculado – nem agora, nem nunca!

Demônio: Eu sei que mentiu. E é justamente por isso que lhe conferi minha bênção…
…Agora, conviva com isso, meu caro.
Bom fim de Walpurgis!

E o demônio desfez-se em névoa.
Névoa que cheirava ao perfume dela, por quem o velho condenara a própria alma pela segunda vez…

(…)

Mesa 42.

-E aí, foi massa?

-Foi…

-Que ‘foi’ mais murcho!

-Ah, foi… Só foi, pô.

-Ela caiu naquela do papel de depósito?

-Caiu… Ô Mário, dela eu tô gostando, velho, nem começa…

-Falei nada. Ainda. Mas vem cá, a Lalinha sabe que você tava de tchãnãnã com a Sandra?

-Jamais! Sandra passa em casa hoje, pega as roupas e deixa a chave no criado-mudo… Terminou de boa, na amizade, coisa rara…

-Meno male…

-AI CARALHO!

-Que foi?

-Deixei o papel do depósito em cima do criado-mudo!

-Vixi, fudeu…

Toilet talk na mesa.

 

Sandra: E aí menina, é tudo grande?

Lalinha: Então… É sim, viu?

S: Grande quanto, menina?

L: 7 dígitos!

S: Hein? A gente tá falando da mesma coisa?

L: Tinha um papelzinho de depósito no banco do carro pra um ‘brother’, com 7 dígitos Sandrinha!

S: Nossa, e você disse que ele tinha maior cara de lascado… Mas, me fala, e o resto, é grande?

L: 2 dígitos… (Fez cara de muxoxo)

S: Que peeeeena, Lá! Mas fez feio?

L: 2 dígitos depois do 20, menina *gargalhada* e faz tudo direitinho… Superatencioso, supercarinhoso…

S: Sei, sei… *Engole um mojito num gole*

L: *Começa a choramingar* Aaaaaiii, tô com medo de estragar tudo! Homem bom assim, todo humilde, gente fina… Ele é tão de boa com a grana dele que anda de Chevette por aí…

S: Peraí… Chevette?