Vira-lata.

 

Sol tímido nesse começo de manhã. E o vira-lata dormindo encolhido, no colo do mendigo que ele acompanha. Fiel. Relaxado.
Às vezes dá pra refletir, que ele só tem essa lealdade toda por que é um bicho…
Por aqui e por ali, entre meus tropeços, só consigo enxergar real lealdade por entre as coisas que os homens chamam de ‘fauna’ e bem pouco por entre seus corações, que ironicamente criaram o próprio conceito escrito/filosófico/etc de Fidelidade…
Por isso que só vou ferir as pessoas se colocarem a mão no meu prato de comida, ou se tentarem colocar uma coleira em mim…
Sim, sim… Vira-lata, fiel e livre…

Sakuras & Cascalho.

 

Mesmo que um lobo veja as sakuras,
Na primeira Primavera em que seus sentidos estão aguçados,
Na Primavera em que deixa de ser filhote,
Ainda assim, nem todo seu fascínio impedirá o girar
Das estações,
Que traz consigo, a fase em que a cerejeira estará nua.
Assim decretado por uma dança maior e mais antiga
Do que a natureza senciente dos homens, lobos e demais seres,
Tudo é mais Estar do que Ser.
Observada a Lei – belíssima regente, desde o botão às pétalas esvoaçantes,
Admiro que por tanto Tempo – este ilusório artifício dos deuses –
Por tanto Tempo me deixei levar pelos extremos…
Fui inimigo do Sol,
Por que seu afago causticante demanda minha tolerância,
Ao derramar calor e luz pela Existência e sobre mim…
Fui amante quase lascivo do Inverno,
Pois o cinza que ele despeja
Sobre a Vida é a mim mais aprazível –
Ao beijar minha pele e o Mundo, durante seu reinado…
E por tanto criar partidos, e tomar lados,
Pelo exercício constante de me fixar
A somente um lado de cada Estrada
Percebi que não fiquei a par da beleza no conteúdo,
Que existia no cascalho existente
Bem no Meio do Caminho.
E assim como o lobo em sua primeira Primavera de sentidos aguçados,
Primavera em que deixa de ser filhote,
Assim como ele pereceria,
Se permanecesse para sempre a observar as sakuras,
Percebi, que de certa forma
Eu mesmo pereceria caso ignorasse o cascalho
Que forra o Meio da Estrada…

O Mago.

Trilha Sonora: The Wizard – Black Sabbath.

 

 

Eis que um Homem de Fé demandou que a montanha mudasse de lugar.

A decisão veio da análise de que seria melhor para o mundo ao seu redor que ela dali se mudasse, pois ele não pensaria apenas em si para querer mudar a montanha de lugar. Afinal, sua Fé é proveniente também da crença de que ele é instrumento de um Bem Maior, o que faz com que seu Egoísmo seja apenas uma sombra em seu passado.

E que fique claro de que quando digo Fé, quero dizer Fidelidade a si, às idéias e aos ideais superiores que todos temos, em diferentes níveis de consciência. Quando digo que havia um Homem de Fé, não disse que havia um homem que adorava Deus ou Deuses; quis dizer que havia um homem com uma Força de Vontade tão bem canalizada que, leal aos seus próprios sonhos de melhoria, desejou que uma montanha se movesse…

No processo de mover tal montanha, reflete sobre tantas variáveis cujo número é superior ao de estrelas no Céu – não somente se pergunta Como, Porque e Quando. A Fé Verdadeira demanda que você sempre pergunte-se muito mais, não por dúvida, mas por humildade e para um aprendizado constante. Este Homem sabe que um dia não era capaz de mover uma montanha de lugar, e começou com pequenos morrotes de terra, até que pudesse desenvolver uma crença maior em suas próprias capacidades – conquistada dia-a-dia – e tranformasse a si em algo realizador de maiores proezas.

E então, a cada grão de terra que move através de sua senda em mover a montanha, ele se perguntou, e se descobriu com as respostas que obteve e com os mistérios que não resolveu no processo. E ele também descobre, entorpecido de Felicidade, que ainda é tão imperfeito que, embora possa realizar tamanho prodígio, ainda assim, não foi capaz de criar uma cópia exata do que conseguiu mudar de lugar, mesmo que cada grão de terra e cada mínúscula rocha tenha sido transferida de um local ao outro.

De fato que agora as pessoas circularão mais livremente, a sombra projetada ao redor da nova montanha servirá melhor ao vale do que antes, a fauna poderá ter mais desenvoltura em sua vida e procriação, o ecossistema florescerá mais belo por causa do Homem de Fé…

Mas também é fato que, não somente a montanha que mudou-se de lugar já não é mais a mesma montanha, como também o Homem de Fé já não é mais o mesmo homem. Mudar o mundo consiste, necessariamente de que seja aceita a Regra Primeira das Reformas de que quando alteramos algo, nos deixamos ser alterados à mesma medida.

Em paz e renovado ele segue…

 

Boshin.

 

Estamos sob ataque…
Estamos sob ataque direto de egos tortos, tristes, confusos
E sensíveis.
Estamos sob ataque direto de Cronos,
Sob ataque de Saturno – O regente dos ponteiros.
Estamos lidando com aço,
Ou silício,
Ondas de rádio, de calor, de água.
Estamos sob a pressão das incertezas,
A pressão da necessidade de um futuro que sequer sabemos;
Por quê diabos tanto almejar?
Por quê diabos não refletir?
Por quê não raciocinar?
Estamos correndo de nós mesmos,
Deglutimos nossos corações e afetamos nosso paladar com fumaça,
Ou álcool…
Entorpecemos nossos dias, na tentativa de esmaecer
A figura de nosso desalento.
Tentamos nos agarrar a galhos fracos…
Estamos sob ataque da Vida, enfim.
A cada minuto uma nova saraivada de balas.
A cada minuto você pensa em parar de andar, mas há uma missão nova.
No entanto, eu digo:
‘Estamos sob ataque, senhores. Mas antes, vamos tomar um chá…’

Encruzilhada…

 

Então você acha que pode escrever sobre mim, garoto? Mesmo sabendo que todos antes de você sofreram tragédias… Ainda quer escrever sobre mim?
Você tem algo a mais, eu presumo. Aliás, você sabe, você acha que tem algo a mais. Aí, dentro da sua cabecinha de macaco.
Ah! Você ficou ofendido… Eu sei.
Entende agora como eu me senti quando Disseram a mim que eu os compreendia melhor? Me Disseram que eu pensava igual…
Discordei. Lutei. Guerreei e gritei. Mas NUNCA quis destronar Deus… Isso é uma grande MENTIRA!
Sabe, eu gosto de você e te odeio. Você prova o ponto D’Ele, prova que Ele sempre teve razão.
0k, Ele SEMPRE tem razão…
Eu vivi várias Eras dos homens, sou feito de uma matéria diferente da sua e ainda assim… Ainda assim pensamos igual.
Detestável constatação.
Mas gosto do calor de sua pele, garoto – ele reflete sua cabeça. Gosto do acético de seu suor – reflete seu coração.
Gosto da arrogância de vir aqui à encruzilhada sem me trazer nenhum presente. De pensar que pode escrever sobre mim sendo tão novo. De não me oferecer nada senão o odor do teu vinho que bebes quase que com aflição. Gosto da escolha especial da noite que me chamou pra conversar…
Porque, meu Deus, por que você deixou recair sobre si o manto e a espada? Podia continuar meu legado de Medo, e elevaria as almas mesmo assim – menos legitimidade, maior quantidade…
Eu sei que foi uma escolha sua, todavia… Alguém tem que fazer o que você faz.
Vou passar as próximas horas vendo você derreter sem morrer, engolido pelas trevas dessa noite quente, escaldante. Verei você sendo devorado por mosquitos e pernilongos enquanto bebe o vinho que deveria ser meu…
Irei me calar e observar, mas uma nota pequena precede o fim de meu monólogo; nosso erro, antes de sermos amaldiçoados com a noção plena do que é o Amor… Nosso erro foi Amar demais…

E se…

E se eu te disser que não existe Salvação? E se eu te disser que não existe Danação também? E se eu te disser que o ‘Caminho Certo’ não deve ser seguido?

Tudo é meramente uma sugestão. Todas as regras anteriores sobre: como, aonde, com o que, com quem, quando…

Tudo que as pessoas te disseram desde o começo da tua jornada é só o que elas pensam que seria a forma mais razoável de se levar a Vida. Mas você vai descobrir que tem mais de um jeito disso ser feito, porque às vezes você está com sede e bebe cerveja, ou vinho, ou água, mesmo quando você tem as três opções; tudo depende do dia…

Está tudo na Sintonia… Alguns dias ensolarados te fazem sorrir, e na porra do dia seguinte você já está rezando pra que a chuva venha!

A estrada é feita de terra pra provar que, debaixo da grama que lhe serve como borda há apenas mais terra; então a mesma estrada poderia ter sido feita em direção a milhões de outros lugares.

Esquece a Verdade. A Verdade é grande demais pra caber na tua cabecinha. Segue na correnteza e vá nadar no Rio da Verdade, ao invés de tentar beber o rio inteiro, seu idiota!

Você não é estável, mas quem diabos é? O Paraíso de um homem é o Inferno de outro, e você só deve aceitar que algumas pessoas vão se sentir miseráveis se tiverem que sentar atrás de uma mesa de escritório por oito horas diárias, mas outras não.

Você não precisa de um Mestre. A maneira mais simples de se arrepender do passado é tomar uma ou mais decisões baseadas apenas no que outra pessoa te disse pra fazer… E Arrependimento, cara, Arrependimento É VENENO pra alma, velho!

Um mundo melhor… Quem vai fazer um mundo melhor? Você? Pense só no seguinte; tu ia gostar se fizessem um mundo melhor pra ti? E se você não gostar das cores, e do precinho – por mais camarada que seja – vai poder reclamar se o ‘Mundo Melhor’ te foi entregue de graça? Faz o TEU mundo, melhor. É aí que você percebe também que o mundo melhor da Caroline não é o mesmo que o teu, e nem é o mesmo que o do Marcos, por mais que os três tenham o céu cor de baunilha…

O Caminho. Não existe O Caminho! O Caminho tá lá, mas esqueça as letras maiúsculas; às vezes caminhar fora dos limites da estrada é mais agradável.

E por fim, não vão ser os lábios de Deus ou as mãos do Capeta que dirão se você levou uma Vida Correta até agora – vai ser quão agradável será seu sorriso quando se lembrar de toda a caminhada até o derradeiro momento.

Não existe Paraíso, não existe Inferno; só existe a grandiosidade do teu último sorriso…

Dawn of the Iron Age.

When the smoke of this cigarette of yours come to an end, where will you head to? Yer dose o’Johnnie is also running out. I ask you once again; where will you head to?

You have decimated yer chances when you stopped to complain, drink and smoke, long ago – the train has arrived, and it’s about to leave…

The years of cotton and silk are over, mates. And though we have never felt the velvet touch of a caressing hand, the Time of Innocence is also gone.

The horizon ahead, is being drawn as the sun provides some color and comes closer – this is the very moment we have been waiting for, this is the edge.

If you stay, things will be the same, mates, so I ask you –  I urge you! –  to come with me. Last kiss of chain smoking cigarettes. Last drop of whiskey down yer throats. Load your steel barrels with lead, gunpowder and dust. The Train is leaving, soldier! This is the dawn of the next age. Tough times lie ahead, but fruitful and glorious grounds either.

To me, gunslingers, to me! LET´S RIDE THE IRONS!

Suor & Fumaça.

(…)
Ela saiu do banho secando os cabelos. Seu corpo voluptuoso, de pele clara queimada de sol estava coberto de pequenas gotículas de água, e nada mais cobria essa obra dos deuses senão o olhar dele; que já estava vestido quando ela saiu do banho. A camiseta seca grudava na pele suada e abafava a umidade causada pelo que os dois haviam feito há pouco.
Mas o quarto pulsava ainda…
O quarto ainda pulsava, cheirava a sexo ainda, e no ouvido dos dois ainda ecoavam os gemidos um do outro. Então ao cheiro de sexo misturou-se o cheiro de Morte do charuto barato de chocolate que ele amava. À meia-luz icônica, ela disse – acendendo um cigarro -, displicente e sem cravar seus olhos azuis nele:
-Dorme aí…
-Nunca dormi abraçado – disse ele – e nem quero aprender a fazer isso agora. – engatou com a voz arranhando – mas me diga; não vai mesmo largar dele?
-Não. – ela respondeu com simplicidade.
-Acho que fui longe demais, saindo com vocês como se fosse seu amigo. Ele ainda me deu carona até em casa, e depois eu vim pra cá…
-Esquece isso, me dá uns carinhos… – ela disse, quase ronronando, engatinhando sobre a cama em direção a ele.
Ele ficou meio estático. A fumaça deixava seus olhos vermelhos. Conjecturou alguns milissegundos e questionou-a:
-Eu te deixaria sozinha, né? Mesmo ao te lado, te deixaria sozinha, não é por isso?
-Sim – confirmou a moça, deitando a cabeça no colo dele – Você tem um castelo no ar. Tem o mais lindo castelo no ar que existe, mas eu vivo aqui na Terra. Você é demais, mas é demais pra qualquer mulher, meu anjo… – e lágrimas começaram a escorrer de seu rosto.
Ele abraçou-a com força, carinhosamente, e lambeu cada gotícula salgada que se desprendeu dos olhos azuis da menina.
Ele, sempre ele; apagou seu charuto nas próprias costelas para não chorar também.

(…)

девочка моя (Devochka Moya).

Soundtrack: Lana Del Rey – Blue Jeans

Pela seda que vestia hoje, seus cabelos loiros caiam doces e leves à altura de sua cintura, fazendo um quadro perfeito ao contrastar com sua camiseta vermelha de alças finas. O corpo esguio, vestido numa calça jeans mais velha que o Sol caminhava em meio à noite, fingindo não ter rumo, enquanto ela esboçava um sorriso que não queria sair de seus rubros lábios carnudos por razão alguma. Só ela e seu anjo da guarda sabiam, no entanto, que por mais que ela conseguisse sorrir uma hora, a opacidade de seus olhos azuis como céu de outono a trairiam sempre, pois essa seria pela eternidade dos próximos minutos o espelho de sua alma.

Ela chegou de volta às ruínas de sua antiga casa nos limites da cidade, caminhou pelo cenário claramente consumido pelo fogo no passado. Mas agora as cinzas estava frias; há dez anos ninguém passava por aquele lugar.

Segurou uma antiga fotografia de casal queimada, onde atrás se via inscrições em russo. Jamais poderia imaginar como aquilo poderia ter parado ali, e tinha plena consciência que nunca saberia.

Imaginou ser um carta de amor, daquelas de tom adolescente e meloso em que se planeja um futuro irreal e belo – dobrou, e colocou no bolso. Caminhou um pouco mais, e sentou-se nos escombros de onde um dia foi a parede que dividia seu quarto do quarto de seu irmão. Começou a nevar.

O peso em seu coração, evocado pela presença naquele lugar de tragédia, era como uma tempestade em meio a uma ilha tropical. Mas eis que algum sol insistia dentro do cenário de sua alma, e pouco a pouco o vento tornou-se brisa, a chuva, uma leve garoa. Ela sabia que isso tinha algo a ver com a curiosidade que a carta em seu bolso lhe despertou.

A menina respirou o ar pesado da noite envolta em neve e fumaça de chaminés, enfiou a mão no bolso e trouxe de volta a carta às mãos.

De onde isso viera? Como fora parar ali, em sua casa? De quem e para quem era aquela carta? De que ano seria? Todas essas questões rodaram pela sua mente, mas sem esforço algum para serem respondidas. A garota apenas bebeu o líquido de cores vivazes e sabor doce que eram essas questões, esse mistério, essa carta.

Ficou ali, olhando para as letras, com os baços olhos azuis cada vez mais brilhantes. A sua análise não era fria, de fato concentrou-se apenas na superfície das questões.

Decidira que pela força impressa nas letras, e pelo pouco cuidado na escrita, o remetente era homem. E para ela, todo o mistério agora resumia-se em saber o que a menina sentira ao receber a carta – pois ela estava certa de que a carta fora recebida.

Mas e ela, a remetente? Com o incêndio, ficara sem resposta. A menina que lhe escreveu esperava uma resposta que nunca viria, como quando esperamos o refrão de uma música instrumental que não conhecemos.

A água não pôde ser evitada de escorrer daqueles olhos azuis, embora a garota estivesse sorrindo. E de dentro desse sorriso, brotara uma imaginação doce, da imagem de uma adolescente correndo pelas ruas de Moscou atrás do carteiro, dando um abraço no mesmo e lentamente caminhando de volta pra casa, lendo a carta de seu amado, onde estava escrito:

‘Berlim, 7 de maio de 1945.

Devochka moya,

Você me deu o que me manteve vivo todos esses dias de sangue e chumbo; o sabor de teus lábios.
Berlim não existe mais, sobraram apenas cinzas e história.
Voltarei aos teus braços em breve, basta que decidam quem ficará em guarda aqui, mas os soldados de minha divisão são poucos e prestigiados, logo posso requerer meu retorno imediato, sem medo de ser negado.
Não fique muito pela neve, embora eu saiba que a Primavera beija Moscou eu preciso cuidar de você, mesmo de longe.
O tempo de chumbo e sangue se foi, e o futuro guarda um mundo livre, sem tensão ou guerras.
Devochka moya, Ya tebya lyublyu,

Yuri.’

Coberta em neve, a moça dos olhos azuis consumira-se em lágrimas de emoção, após mentalmente redigir a carta para a menina russa. Como que acordada de um transe, percebera que a noite havia caído sobre o mundo.

Ela se sacudiu, batendo a neve de seus ombros e seu corpo, enquanto levava a carta ao bolso. Levantou-se tremendo de frio e morrendo de fome – mas com um sorriso no rosto. Caminhou em direção à escuridão que separava as ruínas em que se encontrava, da cidade em que vivia, abraçando a si mesma.

A alegria a iluminava, enquanto a noite envolvia suas belas formas a caminho de sua verdadeira casa…

O que é & o que nunca deveria ser…

Trilha Sonora: What is and what should never be – Led Zeppelin

(…)

Depois de eu ter riscado o mármore do Céu com minhas garras. Depois dela rasgar as minhas costas com as dela. Depois dela ninar-se em meu peito ainda arfante, depois do beijo quente e úmido de quatro séculos de duração em meio a quinze segundos. Depois de eu me vestir enquanto ela se espreguiçava por toda a extensão da cama.

Depois disso tudo ela ainda sabia sofrer.

Depois de dormir, ela levantou-se de meu peito, agarrou o violão e sentou-se à beira da cama…

Engraçado que quando damos vazão aos nossos instintos, a nudez torna-se bela – mesmo que não seja análoga ao ideal clássico de beleza. Mas após o êxtase, após o clímax, sempre nos dirigimos às roupas, por quê de certa forma a nudez nos fere a visão do cotidiano, do lugar-comum. Mas a nudez dela nunca era ofensiva a mim – e ela sabia, e sentia-se bem.

À beira da cama sua feminilidade era coberta apenas pelo violão. Suas formas pequenas e também delicadas exalavam os últimos suspiros do que havíamos feito, do poema que escrevemos com nossos corpos. Seus olhos rasgados, semi-cerrados, deixavam a mulher oriental em si manifestar-se em seus sussurros roucos com mais facilidade em meio à voz perfeita, doce e límpida que cantava para mim e para si.

E ela sofria, como sofria, – bem e belamente. Ela é tão jovem e ainda assim, era como se fosse um pássaro com um eterno espinho atravessando o peito, cruzando-lhe a alma e adoçando a sua voz…

Cantou e tocou seu violão como se amanhã fosse seu calvário, e como se tal calvário fosse motivo de celebração – soou como um cisne… Sua voz não se elevava nem mesmo quando a canção falava sobre alegrias extremas ou tristezas fúnebres – embora todas as emoções pudessem ser transmitidas nesse compasso belo e único que acompanhava seu dedilhar de cordas.

Ela era linda, sua angústia era linda, sua dor era a epítome da beleza. E então, após a manhã virar tarde ela se cansou e calou-se, apoiando a cabeça no violão, olhando para mim e sorrindo de olhos fechados.

Peguei meu canivete e comecei a cortar as minhas unhas, olhando de volta, tentando esconder meu deslumbre quando – em meio a um gaguejar disfarçado – perguntei:

– E agora?

Ela jogou-se para trás com força e graça, deitando-se ao meu lado e deixando o violão escorregar para frente da cama. Virou-se para mim e respondeu:

– E agora cada um volta ao seu mundo. Eu volto aos braços de quem não me entende, de quem venderia a própria Liberdade por melhores traços do rosto. E você volta aos braços da Estrada que é sua Amante mais antiga, e de quem só poderia roubá-lo uma mulher com cem mil anos de beleza e vivência.

– Não tem que ser assim… – Eu disse – Poderíamos viver a Estrada nós quatro; eu, você, minha caneta e seu violão…

– Tem que ser assim. Só pode ser assim. Eu Amo ele que não me deseja, que não me quer. Eu e Você não nos amamos. Mas você ao menos Ama algo que sempre te acompanhou e bebeu seu sangue, seu suor, suas lágrimas. Não te acho mais Sábio por isso, nem pense que te vejo assim – mas fato é que aprendeu a coisa de pedir & dar, que existe sim nos Amores Perfeitos, embora nunca verbalizados. Continuemos a amar cada um o que cada um ama; eu a ele, você a Estrada…

Calou-se e pôs-se a chorar…

Eu já estava pronto e vestido; de fato, estava pronto antes dela começar a cantar. Beijei-lhe a testa, com meu beijo mais frio, e lambi apenas uma de suas lágrimas.

Saí sem bater a porta.

Hoje, sempre que a tristeza se abate sobre mim, lembro como seria diferente se ela tivesse dito ‘Sim’ – se a menina-pássaro resolvesse abdicar de seu espinho no peito, e procurar a beleza que eu via na Estrada, como se fôssemos uma família; eu, ela, minha caneta e seu violão…

(…)